sábado, 2 de março de 2013


O destino de uma rosa
Desabrochou numa manhã de setembro sob a brisa que soprava do Tietê. Os primeiros raios de sol revelaram a beleza e o frescor próprios de quem nasce pra viver somente um dia.
À medida que a manhã subia as últimas gotas de orvalho, embaladas pelo vento, secam. Mesmo assim, estava radiante. Tão bela e tão frágil. Suspensa em uma haste, plantada em um canteiro, bem próximo à calçada.
Provocou espanto quando vista pela primeira vez. Afinal, na tarde anterior, era apenas um botão. Agora estava ali, exposta à curiosidade e aos perigos da rua.
Foi admirada pela dona e pelos vizinhos, pois era a primeira da temporada e correspondia aos cuidados e às expectativas. Linda! Não iria pra um jarro, ficaria ali como presente às borboletas, beija-flores, se existissem.
O garoto, mochila aos ombros, subia a Rua Madalena Rampinelli quando em frente ao Bitencourt, parou. O barulho de outras crianças que entravam na escola trouxe-lhe à mente um pedido da professora de ciências na aula anterior: “tragam uma rosa de casa”.
Bem! Uma rosa. Onde iria encontrar uma rosa àquela hora? Na casa dele nem se quer havia jardim! Quanto mais uma rosa! O melhor seria gazear o primeiro horário pra escapar à fúria da professora. Ela era rigorosa com os que não faziam as atividades.
O problema era o tempo. Quantos minutos levaria pra chegar ao Dom Paulo? Cinco minutos, oito, no máximo. Faria um jeito de chegar depois do início do primeiro horário. Assim o portão estaria fechado, mas abriria para o segundo.
E o tempo? Como gastá-lo?
Em vez de seguir para a direita, onde sairia direto na Avenida Guarulhos, virou à esquerda a fim de prolongar o percurso.
Descia pela Rua José Damiani, pensativo. Mas, de repente, levantou a vista e viu, além das grades, a rosa de que tanto precisava. Porém, a rosa não era dele. Seria pouco provável que a dana da casa desse uma flor tão bonita pra ser dessecada num laboratório. Sem chance! Continuou descendo, sempre de cabeça baixa e pensando na rosa e na nota zero que iria tirar em Ciências.
Trinta metros abaixo parou mais uma vez. Não custava nada tentar. O máximo que poderia acontecer era ouvir um não bem forte.
De frente à casa da rosa, bateu palmas. Surgiu uma senhora cara um pouco irritada.
- Dona, me dê essa pra mim!
- Nem pensar! Pra que um menino quer uma rosa?
- Eu preciso, dona. Vou fazer uma atividade no laboratório de Ciências!
- Já disse que não!
- Dona, por favor, eu vou ficar com zero se não levar uma rosa!
O discurso do garoto surtiu efeito.
- Tá bem! Vou dar. Mas cuide bem dela. Não deixe que ninguém arranque suas pétalas.
- Certo, minha senhora! Ninguém encostará um dedo nessa flor!
Com a rosa na mão, desceu pela Avenida Guarulhos. Enquanto esperava o semáforo fechar, olhou detalhadamente pra ela. Levou-a ao nariz e sentiu o perfume suave que irradiava. Viu a delicadeza de cada pétala.  
Uma coisa tão bonita pra ser dessecada em um laboratório. Nunca!
Naquele dia, a prima do garoto recebeu o presente mais lindo da vida dela e a primeira declaração de amor. 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013


Timão Campeão

Naquela noite, eu desci na Avenida Guarulhos e andei pela Marechal Rondon até chegar à Rua Dona Maria dos Anjos Pires onde ficava a residência do meu irmão. Veja em que toca me meti. O cordeiro visitando a morada do lobo. O meu irmão, um santista fanático, teria que me aturar, pois eu fui ver o jogo justamente na casa dele, com direito a gritos e outras coisas mais, típicas de um torcedor corintiano.

No início do jogo, ele tirava onda de mim, dizendo que já havia vinte e três anos que o Timão ganhara um título. Na época, 1977, eu contava apenas dezessete. Isso quer dizer que quando nasci o time do Parque São Jorge já não colocava a mão na taça, há muito tempo.

Esse fato intrigava o meu irmão. Como poderia ser um troço desses? Perguntava ele, indignado.

Bem, o melhor é que o Basílio fez o gol da partida que deu o título ao Corinthians naquela noite. Meu irmão ficou com tanta bronca que queria quebrar a TV a pauladas. Para sorte do aparelho, na hora em que ele procurava o instrumento a fim de fazer a destruição para que eu não visse a término da partida, a luz apagou, deixando a casa às escuras, impossibilitando, assim, que se achasse um porrete ou coisa parecida. 

Como a luz não voltou, a TV escapou ilesa e nós fomos deitar, mas nem eu nem ele conseguimos dormir. Eu estava eufórico de tanta alegria; ele, morto de raiva e reclamava que até o aparelho de TV era também um corintiano!




domingo, 30 de janeiro de 2011

Nem troféu nem Kichute

Estávamos em 1974, o colégio Dom Paulo fora inaugurado naquele ano. Também, naquela data, houve um torneio de Handebol promovido por nosso professor de Educação Física. Os alunos de todas as turmas se dividiram em equipes. Umas fortes, outras nem tanto. A nossa, formada pela 7ª “D”, era uma das mais fracas de todo o colégio. Lembro-me que tudo fora arrumado de última hora. Alguns colegas tinham um bom conhecimento nesse tipo de competição esportiva, outros, porém, nunca haviam sequer pegado em uma bola de handebol.

Esta era a minha situação. Por isso, neguei relutantemente quando me puseram no time sem o meu consentimento. Mas, o Manuelzinho acabou me convencendo de que nenhum ali era craque no esporte. Que o importante seria competir. Aqueles papos desportivos já tão manjados e desgastados por todos. Acabei cedendo ao convite e permiti que meu nome continuasse na relação da equipe de nossa turma.

Manhã cinzenta de uma quinta-feira, todas as equipes estavam na quadra que existia (ou ainda existe?) na frente do colégio. A ansiedade era visível nos rostos daqueles adolescentes, principalmente, para os iniciantes. Aguardávamos a chegada do professor para que fosse iniciada a competição. Finalmente, pára o Karmann-Ghia em frente ao colégio e ele desce. Vem sorridente como sempre. Com o apito nos lábios, reúne as equipes e dar início o evento desportivo.

Chegou o momento da nossa (7ª “D”) se apresentar. Na hora da apresentação, houve vaias por parte de alguns adversários, mas, surpreendentemente, os aplausos foram muitos e acabaram por sufocá-las.

Na quadra, foi uma negação. Digo melhor: um fracasso geral. Pegamos uma das equipes mais forte do colégio, porém, ganhamos a simpatia da torcida e de outras equipes que torciam pela nossa, desejando que ficássemos na final para facilitarmos a vida delas, todavia não houve apoio que nos salvasse. Éramos fracos mesmos e fomos desclassificados de primeira.

Ao término do evento esportivo, saímos pela Avenida Guarulhos. Uns alegres, nós nem tanto. Para piorar a situação, deu uma forte chuva que inundou toda a avenida. Passamos uma meia hora debaixo de uma marquise esperando o tempo melhorar.

Finalmente, as nuvens se dissiparam e a chuva parou, mas, na avenida, a água descia como se fosse de uma barragem estourada.

Sai, pisando nos pontos mais seguros a fim de não encharcar o Kichute para que estivesse sequinho pro dia seguinte. Não teve jeito, em frente ao posto de gasolina pisei sobre a tampa de uma boca de lobo e ela pendeu pra um lado. Pronto! Lá se foi ele, ao sair do pé, boiando avenida abaixo até que entrou em parafuso noutra boca de lobo e sumiu.

Sem troféu e sem Kichute, cheguei em casa. Somente uma tristeza imensa enchia meu coração.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Nome gringo

No tempo em que a carta era o único meio de comunicação entre o Norte e o Sul, nasceu a primeira neta de Dona Lourença. Esta morava em Sergipe e ficou sabendo do nascimento da netinha por meio de uma correspondência escrita na Ponte Grande e postada na agência dos Correios do centro de Guarulhos.

Dentro do envelope ia também uma linda foto da menininha. Era uma coisinha fofa. Não puxara a família da mãe, todos brancos de olhos claros, descendentes de antigos portugueses que habitaram nas terras sertanejas do Estado Sergipe. Saíra ao pai, mulato, de origem baiana que ao juntar-se à filha de Dona Lourença, resultou numa bela mistura: a autêntica cor brasileira.

Ao receber a carta, Dona Lourença não se conteve de tanta felicidade. E, lá onde residia, saiu a mostrá-la pra toda vizinhança. Era uma forma de compartilhar tanta felicidade, coisa que ela não suportaria sozinha.Numa dessas visitas de divulgação da neta, chegou lá em casa e foi recebida por minha mãe que também compartilhou das alegrias vividas por Dona Lourença. Entre conversas que iam e conversas que vinham a avó afortunada, deixou escapar um descontentamento: o nome da neta. Muito esquisito. Coisas de pessoas que moram em cidade grande. Onde já se viu, colocar um nome tão feio, ou melhor, inapropriado em uma criaturinha tão bonita igual a sua netinha?! Ela falava colocando a mão sobre os lábios, com receios de que outras pessoas ouvissem e fizessem zombaria. Isto não contava. Ela estava muito feliz pra ser aporrinhada. Mas minha mãe insistiu e ela acabou cochichando no ouvido dela o nome tão estrambótico: o nome de minha neta é PANELA! Realmente, era muito esquisito. Não seria um engano? A senhora não leu errado? Como errado! Eu fui alfabetizada pelo mestre Filomeno, quando criança, no tempo em que se usava o chão de areia como lousa de giz. Pois, então tá bom. Fica o dito pelo não dito!

A partir daquela data, dona Lourença começou a fazer planos pra vir a Guarulhos. Visitar a única neta passou a ser uma obsessão na vida.

Chegou o dia tão esperado: Dona Louença desceu na Ponte Grande. Cadê minha netinha? Está aqui sua neta. Ô minha filhinha, você tão bonita, com um nome tão feio! Como assim, mamãe? Respondeu a filha escandalizada. Ora! É o que eu li na carta: PANELA! Nossa, mãe! Que confusão! O nome da menina é Pâmella. Quem mandou você colocar nome gringo em sua filha?

quarta-feira, 23 de junho de 2010

De segunda época

Transcorria o final de 1973. No Ginásio Estadual da Ponte Grande, que funcionava no atual prédio do Carlos Machado Bittencourt, começavam-se os preparativos para as férias. Alguns colegas estavam ansiosos a fim de viajarem para o litoral ou para o interior, mas outros tinham pesadelos à noite graças as benditas provas de segunda época. Entre esses desafortunados, incluía-se minha pessoa o que não chegou a ser uma surpresa. Desde o início do ano, as notas baixas tiradas em Matemática prenunciavam um Natal turbulento e foi confirmado: a soma das quatro notas deu exatos dezesseis pontos. Precisava no mínimo de vinte para ficar com a média final igual a cinco. Nesse caso, passaria me arrastando.

Lembro-me da última prova. Foi um massacre. Nada do que o professor ensinava, por mais que me esforçasse, entrava em minha cabeça. Não que eu fosse preguiçoso, se fosse o caso, não teria sido aprovado em várias disciplinas antes mesmo de fazer a última avaliação, nem havia disputa para me colocarem como membro de grupos. Em algumas matérias, a exemplo de História e Geografia, eu era uma fera. O meu calvário era mesmo a Matemática.

O professor, sabedor de minha fraqueza, olhava-me com um desprezo terrível. Talvez passasse pela mente dele coisa do tipo: este é um caso perdido. Mas o que me deixou chateado foi o dia em que ele entregou a última prova. Pronunciou o meu nome bem alto e deu um sorrisinho sarcástico. Levantei-me da carteira e dirigir-me à mesa do mestre a fim de receber mais um zero. Já sabia. Isso ocorrera o ano inteiro. Ao chegar diante dele, peguei a prova sem encará-lo, foi aí que ouvir a pergunta: ‘Tudo bem?” Sem me virar, respondi de forma ríspida que sim. Ao que ele retrucou: “Tudo bem, uma droga!” Houve risos entre a meninada, principalmente, entre aqueles que já comemoravam um lugar garantido na sétima série. Tudo o que podia contar naquela ocasião eram os quatro pontos do conceito de classe. Foi por meio deles que somei os dezesseis pontos que estavam na minha caderneta.

Voltei para Vila Zamataro dando chute em tudo que encontrava pela frente. Em casa, quando perguntaram se havia passado, arrumei umas desculpas esfarrapadas e contei aos familiares, mas naquela mesma tarde tratei de procurar socorro com a filha de Seu Manoel, o português do empório que morava na rua dos fundos.

Quando ia procurar Carminha, a filha de Seu Manoel, pensamentos negativos começaram a invadir minha mente. Eram o monte de “mas” seguidos de “se”. Mas se ela não tiver tempo? Se não estiver a fim? Se os pais não permitirem? Se for viajar também? Se..., Se..., Se.... Não me perdoaria caso ficasse reprovado em apenas uma matéria.

Para minha alegria, Carminha aceitou ser minha professora particular por alguns dias, mas fez uma exigência: trouxesse urgentemente o caderno. Ela queria olhar o que o professor havia ensinado durante o ano.

Caderno entregue. Os assuntos para a segunda época eram apenas dois: equações e inequações do primeiro grau.

As aulas com Carminha foram um sucesso. Aprendi como num toque de mágica tudo o que não aprendera durante o ano inteiro com um professor renomado. A filha de Seu Manoel que cursava apenas o Colegial no Conselheiro Crispiniano tirou todas as dúvidas que eu tinha dos assuntos. Finalmente, preparado para a avaliação.

No dia da segunda época, estávamos lá, meia dúzia de gatos pingados. A ansiedade era grande. Depois, entrou o professor com as provas mimeografadas debaixo do braço. Fez a chamada e não deixou de olhar para mim com aquele sorrisinho de desprezo, porém, eu estava seguro, coisa que nunca acontecera antes.

Respondi todas as questões e fui para casa cantarolando pelas ruas.

Dia do resultado. O professor entrou na sala e não quis nem olhar para o lado onde eu estava sentado. Chamou nome por nome. Quando chegou a minha vez, estendeu a mão para
entregar-me a prova e não riu, apenas balançou a cabeça e fez um gesto contraindo os lábios. Peguei-a confiantemente e dirigir-me para a carteira. Ao desenrolar o papel, estava lá. Escrito em vermelho e bem grande: 10,0. Nesse dia, quem riu muito fui eu.

domingo, 21 de março de 2010

No centro da Ponte Grande

O primeiro sinal de trânsito – semáforo – instalado na Ponte Grande data de 1974. Ele foi implantado na Avenida Guarulhos com os cruzamentos das ruas Luís Bento Damiani com Pedro Perella. No local, já àquela época, existiam alguns estabelecimentos comerciais os quais davam ao bairro uma aparência de um centrozinho, à imitação em miniatura da Penha ou do centro de Guarulhos.

O semáforo ficava (creio que ainda fica) justamente no centrozinho comercial. A direita de quem segue da Penha para Guarulhos, em frente ao farol, também existia uma agência do Banco Noroeste. Este ficava no térreo de um sobrado. Tinha as paredes pintadas em ocre e uma porta de vidro. Passei várias horas na fila daquele estabelecimento bancário, mas gostava porque o ar condicionado no recinto aplacava o calorão lá de fora.

Do outro lado da Avenida, na esquina com Luís Damiani, no alto de um sobrado com paredes cobertas de pastilhinhas coloridas, havia a escola de datilografia Centauros. Foi ali onde aprendi a datilografar. Não me recordo o nome da professora. O que ficou em minha mente sobre ela, além dos traços esbeltos, cabelos curtos e a meia idade, foi a imensa simpatia e a paciência com que nos ensinava a datilografar, usando corretamente os dedos no teclado das máquinas Remington, só depois, quando o aluno estava bem treinado, podia sentar-se diante de uma Olivetti. Numa das cópias de lição, constava no timbre: Cerâmica Jaboticabal. Nome repetido inúmeras vezes até a prática de datilografista ser aperfeiçoada.

Ali também havia aviculturas que vendiam frangos e codornas vivas ou abatidas. De vez em quando, eu dava uma paradinha em frente às gaiolas pra ficar vendo as codorninhas a comerem e sempre cantando. Achava-as tão bonitinhas! Dava-me vontade de comprá-las pra criar em casa, mas me deparava com um problema: não havia espaço. Queria as avezinhas apenas como bichinhos de estimação, não achava legal aquele papo de levarem às coitadinhas pra panela. Quantos às galinhas, tudo bem. Quando era criança, minha avó me falou que elas são os bichos mais idiotas que existem no mundo animal. São capazes de ficarem vários meses deitadas em cima de um búzio, chocando, como se fosse um ovo. É uma febre, dizia vovó, fácil de curar. Basta dar um banho de água fria nela e, pronto, no outro dia, acaba-se o choco! Em minha opinião, era por isso que elas tinham um fim tão indigno.

Pra quem não gostava de franco empenado, ou seja, vivo, havia uma solução mais atraente e gostosa. Um pouco mais à frente da avicultura, havia a Doceira Ponte Grande. Era uma beleza. Lá se misturavam os aromas dos frangos assados (na televisão de cachorro) com a visão de belos doces expostos na vitrine. Eram chocolates, sonhos, confetes, doces esverdeados, amarelos, marrons, enfim, uma variedade tremenda de guloseimas. Era realmente de encher a boca d’água.

Mas, não só de frangos e doces era o comércio da Ponte. Havia também o Supermercado Zás-Trás. Que barato! Nunca vi um nome tão sugestivo. Para mim, ali tudo era especial, desde as embalagens, que traziam a figura de um coelhinho dentuço, empurrando um carrinho de compras, ao local com todas as mercadorias expostas em gôndolas. Ficava no térreo de um pequeno prédio de uns quatro ou cinco andares. Nesse prédio morava minha professora de Educação Moral e Cívica.

Só isso? Não! Havia farmácias, serralherias, restaurantes, bazares, escritórios de contabilidade e até consultório de dentista.

O meu cunhado trabalhava no Frigorífico Ibérico. Este ficava no início da Avenida Guarulhos, bem no começo da Ponte. Foi um dos locais de que ele mais gostou de trabalhar, apesar de ser pela noite. Na frente do frigorífico, ficava o açougue. Acima do balcão onde ficavam as carnes congeladas eu lia o preço e os tipos de corte: alcatra, lagarto, acém, picanha, pescoço, costela, ih! Era tanto tipo que me davam enjoo. Cansava e pra variar, meus olhos se detinham num letreiro com letras graúdas: FRIGORIFICO IBERICO. Depois o açougueiro me entregava um pacote de carne moída.

No começo da Avenida, confluência da Rua João Teruel Fregoni, o trânsito costumava congestionar. Pra resolver o problema, surgia o guarda Ubiratan (ou Ubirajara não me recordo bem) e tentava por ordem ao caos. Era uma figura estranha. Vestia-se à moda Chacrinha, possuía uma bicicleta enfeitada e era muito benquisto pelos motoristas. Estes respeitam muito o guarda excêntrico e sempre buzinavam quando passavam por ele.

domingo, 24 de janeiro de 2010

NO PORÃO DA PONTE

Na tarde cinzenta do domingo, foi ao porão, solitário, procurou algo em que pudesse firmar seus pensamentos. Pousou os olhos sobre o amontoado de móveis empoeirados, objetos que esperavam conserto. Nada que tivesse valor ou que satisfizesse sua angústia momentânea. Remexeu mais uma vez, mas só fez aumentar a frustração. Estava quase a ponto de desistir quando viu a um canto um rádio velho. Será que ainda funcionava? Pegou-o, soprou o pó que o encobria e levou-o à tomada. Conectou e girou o botão. Iniciava-se uma vinheta: “Marcos Baby Durães! Alô, Alô, São Paulo, meu amor! ... Começa aqui, mais uma Aldeia Global!!...” O programa radiofônico tomava a tarde inteira dos domingos. Nele, incluía-se a transmissão de futebol. Ah! O futebol, o Corinthians bem que poderia ganhar naquela tarde – domingo, 09 de setembro de 1973. Não agüentava mais a gozação dos colegas. Quando o time do coração perdia, a segunda-feira se tornava um calvário.

Não foi o caso. O Timão ganhou apertado no Pacaembu, somente de um a zero em cima do São Paulo. A segunda-feira seria menos desagradável.

Aproveitou o silêncio do porão e deitou-se sobre uma poltrona velha e fria, jogada a um canto. Ali ninguém o perturbaria. As pessoas detestam porões. Este nome tinha tudo a ver com ele: desilusões, frustrações, solidões. Mas era o único lugar em que tinha paz, em que podia viajar em seus pensamentos.

Lá fora ainda restava um pouco de claridade, embora a escuridão o envolvesse. Mal dava pra enxergar a luzinha acesa no painel do velho rádio. Sentindo-se protegido pelo ambiente escuro, adormeceu em paz com a vida e com o time do coração. Uma música suave levou os sonhos a outros recantos.

Madrugada. Levantou-se. Tateou a procura do interruptor. Que horas seriam? Mal enxergava a luzinha vermelha do rádio. Dali a pouco ouviu o barulho do trem passando na Variante. Era uma locomotiva a diesel. Os ruídos davam a impressão de que os trilhos eram bem próximos, mas estavam longe, além da Garagem da VUP- Viação Urbana Penha. A garagem da VUP ficava na Avenida Gabriela Mistral na Penha, entre o pontilhão da linha férrea e o atual Viaduto do Migrante Nordestino. Os ônibus da Viação Urbana Penha – VUP – imitavam disfarçadamente os da Empresa de Ônibus Guarulhos tanto nas cores como nas carrocerias que, na maioria das vezes, eram fabricadas pela Paschoal Thomeu. Dessa extinta empresa, saiam ônibus da Penha com destino ao Bom Retiro e para o Cambuci.

Na rua, o silêncio era quase completo, somente o silvo de um guarda noturno dava sinal de vida. Não era hora ainda de levantar. Aproveitaria o sono gostoso da madrugada naquele momento especial. A segunda-feira não seria pesada. Os são-paulinos que se cuidassem. Voltou a dormir. Os são-paulinos se cuidassem!

De repente abre os olhos. Há barulho na rua. Sobe e desce de pessoas, crianças batem bola. Carros buzinam na Marginal Tietê. Dá um pulo repentino. Quer ouvir a hora. Vai ao rádio. Mexe no ponteiro e ouve: “Seu Leporace agora com o Trabuco, vai comentar as notícias dos jornais. Seu Leporece agora com o Trabuco, vai dar um tiro nos assuntos nacionais.” A seguir, uma voz rouca e cansada surgiu da cascinha de plástico esverdeada e passou a comentar as manchetes do dia. Estas, pouco lhe interessavam, não tinha nada a ver com o aumento das paisagens nem com o do pão. Do pão? É claro que tinha! Ganhava tão pouco! No entanto, o que perturbava agora era o patrão. Perdera a hora! O Trabuco?!

Aí, Seu Leporace, acrescenta mais uma manchete às suas:

CORINTIANO POSTO NO OLHO DA RUA